O PEQUENO REI VIRA-LATA
Eduardo Galeano
Todas as tardes, lá estava ele. Longe dos outros, o garoto se sentava na sombra do arvoredo, com as costas contra o tronco de uma árvore e a cabeça inclinada. Os dedos de sua mão direita dan- çavam debaixo de seu queixo, dançavam sem parar como se ele es- tivesse coçando o peito com uma incontida alegria, e ao mesmo tempo sua mão esquerda, suspensa no ar, se abria e fechava em pulsações rápidas. Os outros tinham aceitado, sem perguntas, o hábito.
O cão se sentava, sobre as patas de trás, ao seu lado. E ali fica- vam até a chegada da noite. O cão paralisava as orelhas e o garoto, com a testa franzida atrás da cortina de cabelos sem cor, dava liber- dade aos seus dedos para que se movessem no ar. Os dedos esta- vam livres e vivos, vibrando na altura de seu peito, e das pontas dos dedos nascia o rumor do vento entre os galhos dos eucaliptos e o repicar da chuva nos telhados, nasciam as vozes das lavadeiras no rio e o bater das asas dos passarinhos que voavam, ao meio-dia, com os bicos abertos pela sede. Às vezes, dos dedos brotava, de puro entusiasmo, um galope de cavalos; os cavalos vinham galopando pela terra, o ruído dos cascos sobre as colinas, e os dedos se enlou- queciam na celebração. O ar cheirava a miosótis e ervilha-de-cheiro.
Um dia, os outros deram-lhe de presente um violão. O garoto acariciou a madeira da caixa, lustrosa e boa de se tocar, e as seis cordas ao longo do diapasão. E ele pensou: que sorte. Pensou: agora, tenho dois.
Vagamundo - contos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. p. 14-5.
incontida: que não se pode conter; incontrolável
rumor: murmúrio; sussurro; barulhinho
repicar: tocar repetidas vezes
celebração: comemoração; festejo
miosótis: tipo de flor pequena, de cor azul
ervilha-de-cheiro: trepadeira de flores grandes, azuladas e cheirosas
diapasão: instrumento metálico em forma de U, destinado a afinar instrumentos musicais e vozes; a nota fixada por esse instrumento